Parecia ser tarde. Aquelas ruas já eram velhas amigas. Árvores, carros, lojas, pessoas. Ali, no meio disso tudo, estava o menino. Vestia uma roupa de sair, sapatinho amarrado - na verdade, um pé estava desarrumado mas mantinha toda elegância do conjunto -, camisa de gola, bermudinha caqui, tudo passado e engomado numa beleza infantil. Ali, no meio disso tudo, o menino chorava. As lágrimas umedeciam os seus olhos e voavam, como quem quisesse regar as árvores que ali o cercava, trazendo-lhes vida eterna.
Agora, estava parado na calçada: seus soluços deviam ser fixos e não soltos com correria ou andanças ritmadas. Ali estava o menino de cócoras. Os carros passavam calmos - o que era de se estranhar, levando em consideração que a cidade em que narramos essa história era feroz e rápida, nunca deixando um espaço aceitável para sentimentalistas ou até mesmo um suspiro para românticos. Parecia que ninguém escutava o choro do menino - o que era de se compreender, já que a cidade nunca era tão caridosa assim com seus habitantes -: todos seguiam adiante. Todos, menos essa mulher.
Vestida num vestido verde vômito, a tal mulher não seguiu adiante: parou. Parou e viu o menino à distância. Admirou aquele corpinho pequenininho e não se preocupou em seus pensamentos serem um tanto quanto redundantes nos dois diminutivos que ecoavam dentro da sua caixa craniana. O admirou por alguns generosos segundos. Depois de admirar aquela obra de arte urbana instalada na calçada, andou, ou melhor, foi até ela.
Tá tudo bem com você? Oi, boa tarde... Tá tudo bem com você? E o menino não respondeu. Meu amor, por favor, fale comigo, assim você me deixa preocupada. A única resposta que a mulher obtinha era a única que ela não queria: mais choro do pequenino. Por favor... Pare de chorar. Não é bonito ver um rapaz grande desses chorando como um neném recém-nascido! E o menino amenizou um pouco nas lágrimas. Isso... Fique mais calmo. Se sente melhor agora? E o garoto desenhou que sim balançando sua cabeça no ar. Qual seu nome, meu querido? Bartolomeu. Disse o menino, rompendo aquele silêncio lacrimoso que tinha instalado até então.
A mulher ficou um pouco desconcertada. Quem daria um nome tão colonial a um menino tão jovial? Prosseguiu a conversa com o menino (que agora tinha nome) não voltando mais a pensar acerca de significados ou das palavras que nomeavam o seu ser. O que aconteceu, Bartolomeu? Eu... Eu... Eu acho que me perdi. Ai, meu deus! Tinha que ser algo parecido desse nível! De quem você se perdeu, meu querido? Me perdi do... De... Da minha mãe! E o menino, digo, Bartolomeu, chorou como uma criança perdida da mãe. Calma, calma, meu lindo! Tudo irá se resolver. Como você sabe, tia? Eu sei. Tenho certeza que resolveremos esse problema! E o menino se contentou novamente nas lágrimas. Um bocadinho de silêncio cercou nossos dois conhecidos. Tia..., disse o menino surpreendendo a mulher. Diga, meu anjo. Tia... Você pode me chamar de Bart.
Agora mais próximos, a mulher arriscou um abraço com a criança - que correspondeu de imediato. O rosto do menino secou. Agora, o sol começava a se pôr, mesclando o céu com o que parecia ser um vermelho chinês com alaranjado.
Vamos! Temos que começar nossa busca. Onde você se perdeu? Eu... Eu me perdi aqui! Entendo... Mas onde você estava com sua mãe? Tava numa dessas lojas, tava passeando de carro? Eu... Tava passeando de carro! Aí eu abri a porta do carro pra brincar aqui nessa calçada e quando vi, minha mãe já tinha ido embora! Entendo... Qual o carro da sua mãe? É um carro verde da cor do seu vestido! E a mulher percebeu que a sua pergunta em nada, ou talvez em muito pouco ajudaria na busca. Certo... Eu acho que o melhor a fazer, é irmos pra casa. Pra casa? Mas eu... Pra casa? O menino não entendeu direito o que aquela mulher quis dizer com a palavra casa. Após questionar, obedeceu sem se preocupar. Sim, vamos pra casa! E estampou um sorriso naquele rosto que não mais percebiam-se resquícios de lágrimas, diante da escuridão que o céu projetava.
Após um curto passeio de carro - e esse carro era preto - os dois chegaram num prédio que devia ser o prédio da tal mulher. E era. A mulher orientou o menino proferindo os caminhos que deviam ser feitos e caminhando devagar para não ser preciso deixar rastros a serem acompanhados. Sem maiores transtornos, subiram de elevador até o décimo andar. Viraram a direita e entraram na segunda porta, a do canto, que devia ser a porta da casa da mulher. Entraram. Os olhos de Bart voavam. O menino admirava aquilo que devia ser uma sala com um encanto que só quem viu pôde ler nos seus olhos. A mulher, que não percebeu a contemplação do menino, não se hesitou em dizer com pressa: Venha, pode entrar, essa é minha casa. Estamos seguros aqui! Ah! Esqueci de te dizer meu nome. Seus lábios mais ou menos carnudos desenharam 'Vera' no ar - o menino não conseguiu acompanhar o som da sua voz, com os olhos, admirou aquela construção silábica dupla e concordou em ser um dos nomes mais bonitos que já ouvira.
A mulher preparou um banho para o pequeno, separou uma toalha, o sabonete mais cheiroso - que comprava pra sua mãe usar quando a visitasse - e então perguntou: Você toma banho sozinho? Eu... Tomo! Claro, claro, você já é um grande rapaz, me desculpe em perguntar tamanha bobagem. O menino não disse mais nada, entretanto, ele nunca tomava banho sozinho. Assim, Bart teve o prazer e a aventura de tomar pela primeira vez um banho sozinho. Com o término do banho, o menino saiu do banheiro um pouco molhado e com a toalha bastante desconcertada. Vera também separou uma roupa que serviu perfeitamente no garoto. Eu tenho algumas roupas do meus sobrinhos, sempre que eles vêm aqui, esquecem alguma! E o menino estampou mais uma vez um sorriso. Obrigado, tia.
Outro dia nasceu, trazendo um canto de pássaros e um céu azul. Tomaram café numa mesa de vidro e o menino concluiu, mesmo que internamente: Essa foi a melhor comida que já comi. E uma lagriminha escorregou imperceptível do seu olho direito. Rompendo o silêncio, a mulher iniciou: Que dia lindo, né? E o menino consentiu com a cabeça. Dá até vontade de ir pra praia... Se aqui tivesse praia! Resmungou Vera. Mas, sim! Conte-me, qual o número da sua casa? Questionou a mulher referindo-se ao número do telefone da residência do menino. Não tenho telefone... Respondeu o menino entendendo perfeitamente a convenção numerológica. Certo... Onde é a sua casa? Poxa, tia, eu não sei explicar onde é minha casa. Não sei direito! E a mulher ficou um pouco desorientada pois não sabia como fazer exatamente para encontrar a mãe de Bartolomeu. Já sei! A primeira coisa que devemos fazer é levar você pra polícia! Pra polícia?! Sim! Não, não! Levar você pro Juízado! Ah, sei lá, tem que levar você pra um lugar desses... E o menino temeu toda essa história, mesmo sem entender direito, mas obviamente não gostava de polícia. Vera, que percebeu isso nos olhos do menino, disse, acalmando-o: Calma, encontraremos sua mãe hoje. E o menino abriu um sorriso forçado, tentando agradar as palavras daquela mulher.
Terminaram o café e saíram de casa. Fizeram o trajeto inverso da noite passada, indo dessa vez da porta da direita até o carro preto que repousava na garagem. Saíram do prédio. O trânsito estava mais sereno que ontem: era feriado - o que explicava as ruas vazias e calma que assolava aquela cidade. Deslizavam no negro asfalto e eram guiados por uma música voz, gaita e violão que o rádio cantava. Vera freou. O carro parou num cruzamento - seria o último momento em que Vera e Bartolomeu ocupariam o mesmo carro.
Um menino de rua veio até a janela de Vera pedindo esmola e insinuando limpar o vidro do seu carro preto. Vera, dentro do carro, gritava dizendo que não tinha dinheiro, pro menino não jogar água no seu vidro e ir embora. O menino, do lado de fora, ouvia as palavras abafadas como se aquilo entrasse num ouvido e saísse pelo outro. Uma água ensaboada dançava no vidro do carro de Vera. A mulher, puta com a situação, buzinou sem piedade, fazendo um barulho infernal preencher aquela rua que estava vazia. Bartolomeu, acompanhava tudo com os olhos e esboçava algum medo. O menino tirou a água acumulada no vidro e gritou do lado de fora: Calma, minha tia! Pra quê o stress? Tá louca é, porra? Sua vagabunda! A mulher alimentou a discussão, vestindo o menino com outros nomes feios que Bart não queria mais ouvir na sua vida. Cala a boca, seu idiota! Vá trabalhar! Vá procurar o que fazer! Seu imprestável! Seu menino de rua imundo! E foi com essa exclamação que o medo de Bartolomeu o dominou e o menino, que sentava no banco de trás, abriu a porta com força e saiu correndo pela rua. O semáforo esverdeou e a mulher, atônita com a discussão e com o impulso do garoto, arrancou o carro sem saber o que fazer.
Correndo e chorando, Bartolomeu preenchia as ruas inóspitas daquela cidade. Parou na calçada, soluçou mais um pouco ainda de pé e fixou-se de cócoras. Como chorava o pobre menino. Se tivesse alguém passando por aquela rua, certamente se comoveria com tal cena. Depois de alguns segundos, o menino se levantou novamente. Olhou para um lado, olhou para o outro: ninguém. Correu até a esquina dessa rua. Apenas um papelão, alguns restos de comida, jornais velhos e sacos plásticos. Ali, ficou de cócoras novamente. Sentou no chão. O menino tremia no que parecia ser uma mistura de frio e medo. Pegou o papelão. Cobriu o seu corpo e deitou naquele chão quente. Fechou os olhos. Continuava a chorar. Do outro lado da rua, o carro preto de Vera passava vagarosamente a procura do menino. A mulher, que nesse dia não estava com o vestido verde vômito, olhou para aquela criança envolta no papelão e disse: Não... Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. É o Bart. Ele é mais um menino de rua. E a própria Vera seguiu reto com o seu carro preto tentando afirmar para si que tudo aquilo não se passava de uma grande mentira.
4 comentários:
Gostei muito Dan, muito!
triste. apenas isso.
gostei do texto, mas não do fato de ter contribuído para tal. =/
Nossa Dan!
Lindo.
Triste mas lindo...
eu gosto de melancolia!
parabéns.
Gosto de textos cíclicos! Esse é um.
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